
"Resgatando o pão dele de cada dia", um belo texto de Tonho do Paiaiá, o filho de Nova Soure BA, onde ele narra com humor e simplicidade a história de um prefeito e uma carona oferecida a um eleitor.
Naqueles tempos a municipalidade não tinha condições de adquirir um veículo automotor para prestação de serviços públicos, tampouco para o deslocamento do seu alcaide. Afinal os recursos arrecadados eram ínfimos e só davam mesmo para manutenir os próprios do município e prestar os serviços públicos obrigatórios e necessários, mesmo assim, com muita dificuldade e talvez com ineficiência.
De veículo mesmo a Prefeitura dispunha somente de uma carroça de madeira, com duas rodas e utilizada, principalmente, para o recolhimento do lixo urbano, puxada por uma burra (mula) fornida, bem cuidada e bastante velha. O cocheiro era um homem afrodescendente, de pequena estatura, compleição física alargada e com certa dificuldade de locomoção, radicado em Nova Soure há muito tempo, vindo lá das bandas dos Catorze — povoado do Município do Inhambupe — conhecido como Chico Lixeiro.
Zé Ramos era proprietário de um veículo Jeep, fabricado pela Willys Overland do Brasil, que o utilizava na idas e vindas às suas fazendas e nos deslocamentos para a Capital da Bahia, em busca de verbas para ajudar na sua administração e contatos com políticos de então, principalmente o deputado representante do município na Assembleia Legislativa o Dr Acioly Vieira de Andrade, filiado à antiga UDN – União Democrática Nacional, nascido no Município de Cícero Dantas — governara, como Prefeito nomeado, os municípios de Feira de Santana e Cipó.
Estrada asfaltada só a partir de Alagoinhas e olhe lá. Portanto, dá pra imaginar o tempo de viagem entre Nova Soure e Salvador; no mínimo um dia, sem contar com percalços de atoleiros ou pequenos defeitos no veículo, se viessem a acontecer.
Certo dia, Zé Ramos fora chamado à Bahia – assim chamávamos a nossa Capital, provavelmente em referência à Baia de Todos os Santos – para encontros com políticos com vistas a garantia de emendas orçamentárias que beneficiassem a administração municipal. Saíra do Soure na terça-feira pela manhã, só retornando na sexta-feira da mesma semana, no seu Jeep Willys, velocidade empreendida na casa dos 60 km por hora, no máximo.
Chegando em Olindina, parou na cidade para tomar água e conversar com alguns amigos e logo em seguida retornara o curso da viagem ao Soure, no seu veículo.
Na saída pro Soure, na altura do pontilhão, um jovem dera com a mão – um pedido de parada do veículo – pretendendo obter uma carona até sua residência. Naquele tempo podia-se dar carona, sem risco da violência a que hoje assistimos todos os dias.
De pronto Zé Ramos reconhecera o passageiro, parara o veículo e cumprimentara o viajante. Era um rapaz trabalhador, jovem pai de família e que morava na Bandinha – era como chamavam o Paiaiá naquele tempo.
Vai pra onde, lhe pergunta Zé Ramos?
E o jovem rapaz, todo acanhado, lhe responde: vou pra Bandinha; o senhor pode me levar até lá? E Zé Ramos: claro que sim; pode montar, abrindo a porta do carona para acesso do passageiro. O jovem bandinhense (ou paiaiaense mesmo) que já vinha caminhando em direção à sua casa, ficara extremamente alegre além de agradecido.
Primeiro por ter sido reconhecido pelo Prefeito do seu Município; segundo porque viajaria de carro e pouparia suas energias para a lida na roça no dia seguinte. O jovem trazia na mão um saco de papel com alguns pães, decerto para sua família. Era um produto raro; somente em cidades se tinha acesso a padarias, em povoados não existiam esta espécie de indústria, a panificadora.
Viagem empreendida, conversa daqui conversa dacolá – de quando em vez o jovem enfiava a mão no saco, rasgava um pedaço de pão e levava à boca, não sem antes oferecer: ―.... o sinhô é 'seuvido' seu Zé ? e Zé Ramos sempre dispensando a oferta.
A prosa fora muito boa e gratificante a ambos. Pra Zé Ramos que conseguira uma companhia, afinal viera sozinho de Salvador até ali. Pro jovem que descansaria as pernas na caminhada de 11 km até sua casa.
Pronto. Chegado à Bandinha ou Paiaiá, o jovem pedira a Zé Ramos que o deixasse em frente à Igreja de São José do Paiaiá – além de ser ponto referencial, ele desejava fazer uma oração agradecendo aquela carona e encomendando pedidos a São José em favor do proprietário do veículo.
O jovem agradecera o préstimo de Zé Ramos e este seguira viagem. Ainda ia passar na Fazenda Brejo Grande, para bater um papo ligeiro com Zé Pequeno de Sinhá (José Moreira de Carvalho), chefe político daquele povoado e seu amigo, como o fizera.
Chegando ao Soure, já quando o sol começara a se esconder, providenciara colocar o Jeep Willys na garagem. Quando já estava fechando uma das bandas da porta da garagem ouve aquele chamado em voz alta: ―seu Zé Ramo, peraê, num feche não, esqueci uma encomenda no seu carro.
E Zé Ramos, que não tinha percebido o saco de papel com os pães do jovem no seu carro, lhe perguntara: esqueceu o que? E o jovem: meus pães seu Zé Ramo. Entrei na igreja, rezei dois ―padre nosso‖ e duas ―avimaria‖ pra mim e pro sinhô. Quando cheguei em casa a muié perguntou: ―trove‖ os pão? Batí a mão na testa e disse: ô mizera meu Deus, deixei no Jeep de seu Zé Ramo, vou lá buscar e tome lhe perna pro Soure.
Parou somente na braúna de Manezinho Galo pra ajeitar a alpercata de tope que estava incomodando seus pés, ainda era nova e não estava amaciada. Subiu a curva do Si dum fôlego só; cumprimentou Alonso de Glória na porta do seu buteco lá nos Paus-brancos e desceu em procura da estrada dos índios e já avistou a cidade. Quealegria! Tava chegando ao Soure, iria resgatar o pão dele de cada dia, iria presentear muié e filhos com o alimento pouco visto no povoado.
Consta que no retorno a penitência junto a São José foi bem maior, o jovem já encontrara a igreja fechada, passava das 8 horas da noite. Chamou na casa de Dona Das Neves – Maria das Neves Prado, que tomava conta da igreja e hoje nomina a Biblioteca do Paiaiá e lhe implorara ― Dona Das Neves, pelo amor que a senhora tem a Nosso Senhor Jesus Cristo, me abra a igreja que quero pagar uma penitência‖ e tascou 5 ― padre nosso‖ e 5 ―avimaria‖ agradecendo ter ainda encontrado e resgatado #opãodeledecadadia#.
O jovem empreendera uma viagem, a pés, de 22 km - ida e volta - entre a Bandinha ou Paiaiá e o Soure ou a Natuba como também o chamavam, para resgatar o pão dele de cada dia.
Concluído nesta madrugada do último dia de Janeiro de 2016, nos meus aposentos do Soure, antes da viagem de retorno a Salvador.
Autoria: Tonho do Paiaiá (Antonio Mário Bastos)
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