domingo, 27 de abril de 2014

Há mais de 20 anos, o poeta santamarense Caetano Veloso já contava em prosa e verso a sua revolta com a poluição do Rio Subaé compondo a sua bela "Purificar O Subaé / Cantiga Para Janaina"


Um dos condomínios banhados pelo Rio Teijipió

 Purificar o Subaé
Mandar os malditos embora
Dona d'água doce quem é?
Dourada rainha senhora
Amparo do Sergimirim
Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságuam em mim
Nascente primária
Os riscos que corre essa gente morena
O horror de um progresso vazio
Matando os mariscos e os peixes do rio
Enchendo o meu canto
De raiva e de pena


Os casos de poluição de lagos, rios e nascentes no Brasil são tão frequentes que já não escandalizam pois a prática banalizou-se de norte a sul do país, em metrópoles e pequenas cidades. A história narrada abaixo sobre a transformação do Rio Tejipió em um canal de esgoto na capital pernambucana, é apenas mais uma, mas a narrativa com forte dose de emoção que foi publicada no Jornal do Commercio, serve como mais um alerta para preservação dos raros cursos d'água que ainda restam Brasil afora.

Euriques Carneiro

São 20 quilômetros apenas. Do começo ao fim, mais esgoto do que rio. Difícil adivinhar que ali, naquele canal sufocado pelo lixo, é o Tejipió que escorre, mais lama do que vida. Os moradores nem sabem. Muitos sequer desconfiam. Olham o filete de água que passa banhando seus quintais e só enxergam esgoto a céu aberto. Vocação ingrata. Carregar, para mais adiante, os dejetos de uma cidade inteira. Até onde não puder mais. Até formar uma montanha de lixo e virar o quintal da morte. Maltratado, o curso d’água cumpre sua sina de cão sem dono. 


Mal dá tempo de nascer. O sopro de vida se esconde, imaculado, em São Lourenço da Mata, no Grande Recife. É ali que o Tejipió começa a existir. As fontes de água limpa, minando no breu da mata, logo se encontram para formar uma pequena lagoa, que, embora barrenta, respira pureza. Não por muito tempo. Poucos quilômetros adiante, após cruzar a BR-408, o Tejipió inicia sua saga de poluição. Ao longo de todo o percurso, até se abraçar ao mar, serão muitos os flagrantes de agressão. A reportagem documentou, canto a canto, esse descaso. Trilhou, de carro e (quando se tornou possível) de barco, os caminhos de um rio esquecido.

Um breve suspiro. É tudo o que o Tejipió tem, do instante em que nasce até seu fatídico encontro com as sobras da cidade e sua triste metamorfose. Nesse hiato de preservação, banha terras ricas. Deixa a nascente e segue em direção a condomínios de luxo e, ainda protegido da sujeira da metrópole, ajuda a desenhar uma paisagem bucólica. É seu raro momento de glória. Dali por diante, é só desamor.

Ensina a geografia que o Tejipió é um rio limite. De alma e contorno urbanos. Essencialmente metropolitano. Separa Recife de Jaboatão dos Guararapes em parte do seu caminho. Tanto pior para ele. Como costuma acontecer em áreas limítrofes, vira terra de ninguém. Símbolo do abandono. Destino trágico, traçado assim que suas águas atravessam a BR-408. De um lado da estrada, preservação e natureza. Do outro, esgoto, sujeira e saudade.

Encurtando aqui, alongando lá, o rio quase some, reaparece, some de novo. Vai cruzando Recife e Jaboatão sempre partido, espremido, humilhado. Resiste como o desaguadouro do que a cidade descarta. Deixa para trás. Os bairros se sucedem: Cavaleiro, Sancho, Tejipió, um após o outro e o mesmo desalento. No Barro, Zona Oeste do Recife, o absurdo desafia as leis da física. O Tejipió vira uma ponte de lixo. Um tapete coberto de dejetos sobre o qual é possível caminhar, sem afundar.

Não muito longe dali, uma surpresa, para quem, até então, só havia visto o Tejipió reduzido a canais, córregos e lamaçal. Pela primeira vez, o rio vai virar rio de verdade. Ao cruzar a Avenida Recife, no bairro de Areias, ele incorpora, alarga e, para espanto dos mais incrédulos, passa a ser navegável. Três ou quatro barquinhos descansando na margem atestam a novidade. Ganha só em tamanho. A sujeira é a mesma. 

O passeio de barco de quase uma hora, até o rio chegar à Bacia do Pina e, mais adiante, se perder no mar, é de uma beleza surpreendente. Mas não menos revoltante. Caçote, Imbiribeira, Afogados, como se fosse natural, todos despejam seus dejetos no rio. Em um dos trechos, sem qualquer cerimônia, o banheiro de alvenaria foi construído quase dentro d’água. As poucas garças que enfeitam o céu disputam com os sacos de lixo e as garrafas de plástico um pedaço de galho para descansar o voo. 

Carlos da Silva, 47, o barqueiro que leva a reportagem pelas águas do Tejipió, sabe que o rio está fora do cartão-postal da cidade. “É rio de pobre. Só passa em periferia, onde os turistas não tiram foto.” Conhecedor do assunto (aos 12 anos foi morar na beira do Tejipió), ele levanta uma dúvida interessante: “Será que se mais gente fizesse esse passeio, visse a força e descobrisse a beleza do rio, ele continuaria tão esquecido?”

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